quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

 Recomecemos a dar vida ao "Sou da Gândara"!!!!


 … nunca ninguém os ouviu ralhar um com o outro!

Sessenta anos de vida em comum e, nunca por nunca ser, se ouviram as suas vozes em tom mais elevado. O respeito era e é mútuo. E frutificou!
Nunca os filhos os ouviram trocar palavras azedas.
Também nunca se deitaram na cama sem estarem de bem um com o outro e cada um consigo próprio.
Mas… vida que não é ralhada… não é governada! Ditado popular algo agressivo.
Sempre souberam respeitar a vez de falar. Quando um falava, o outro ouvia.
Entrar no campo dos ralhos, da troca de palavras, do dizer sem pensar e depois vir a arrepender-se do que foi dito, é perder o respeito, é faltar ao respeito, é agredir aquele sentimento que os uniu: O Amor!
Nunca se deitaram na cama sem estarem de bem um com o outro! É verdade!
E sorriem quando lhes faço, repetida, a pergunta, tentando que se descaiam na afirmação e me deem a conhecer episódios, quiçá caricatos, da sua vida em comum!
Mas… vê-se firmeza nos seus olhos! Pequenitos, reduzidos no tamanho pelo sorriso espontâneo e pelas rugas, vincas da pele, macias, vazias de carnes rijas por dentro, aveludadas, que se formam ao canto do olho e seguem rumo á orelha, direitinhas ao cotulo da cabeça.
Ela dá-lhe a mão e diz-me, olhando-o olhos nos olhos, como que a pedir assentimento/consentimento para a afirmação que vai fazer. Vê-se nele igual reação e, olhando-me então ambos, francamente, pronunciou: “Guardávamos tudo para a noite. Sentávamo-nos na beira da cama e passávamos cada hora, cada minuto daquele dia, a pente fino! Enquanto um falava, o outro parecia ouvir atentamente. Nunca valorizámos palavras proferidas sem pensar nem atos irrefletidos.
Mas reconhecíamo-los!
E sabíamos muito bem que duas cabeças, são duas sentenças, mas tem que haver entendimento para que haja uma só solução!
Parecia-nos! Disseram em uníssono! E largaram um sorriso de cumplicidade!
Este costume velho ainda hoje o praticam e só deixará de acontecer quando um dos dois partir!
Não sabem adormecer sem ouvir, embora baixinho, a voz um do outro e, também verdade seja dita, sem fazer a sua oração em comum, sem se lembrarem dos filhos, netos e bisnetos e de falar das empreitadas para o dia seguinte: continuar a viver o mais felizes possível!
Foi uma vacina que nos comprometemos tomar todos os dias da nossa vida, sempre ao anoitecer, mesmo antes de deitar.
Vês por que motivo nunca ninguém nos ouviu ralhar?
E queres saber quantos beijos já demos um ao outro? Questionou-me ela, sorrindo “de safada” como que a estudar a minha reação á pergunta.
Na verdade, esperava tudo menos essa questão.
Não penses muito, veio eu em meu auxilio. Tudo muito simples e não erro nem tu tens dificuldades em fazer as contas. Nunca adormecemos sem um beijo de perdão, nem nos levantámos sem um bom dia dado dessa forma!
Conta fácil de fazer. E não sei se sairá errada quando um dos dois partir…
Fiquei surpreso e admirado com tanta certeza. Donde proviria tamanha e tanta compreensão? Fermento bem doseado e massa amassada sem pressas… diálogo constante e mesmo patamar de saberes! Objetivos bem definidos, amor a rodos, perfeita divisão de tarefas e assumir de compromissos. Total e constante empenhamento na resolução de problemas e busca de soluções para os entraves da vida!
Se choraram? Claro que choraram! Ainda hoje choram… de prazer! Choram de saudade! Choram porque sabem muito mais agora do que sabiam há sessenta anos e… manifestam assim a alegria de ter havido um feliz acaso que os juntou e uniu para sempre…
Se fosse hoje? … a primeira coisa que fazia era pedi-la logo em casamento,… para prolongar mais a felicidade!
Sorriram embebecidos, deram um beijo e despediram-se de mim com um “ Deus te abençoe!”…

sábado, 16 de setembro de 2023

 

Abriu-se a Arca do Tempo!


Uma chieira persistente, enquanto o movimento de rotação sobre os gonzos se fazia sentir, incomodava finamente a audição, um misto de sons agudos e graves, desconcertados, fazia-se ouvir e suspeitar do conteúdo pelo muito tempo passado desde que foi aberta pela última vez…

Pela fina frincha, entre a tampa e a borda da caixa, sai de imediato um enorme espaço, volúvel, como que um bálsamo inebriante que gostosamente nos envolve e transporta através do tempo, para tempos imemoriáveis, dando-nos uma sensação de prazer, indelével, que gostosamente abraçamos e, de sorriso sublime, nele embarcamos…

Surge-nos, ao longe, um SOTÃO DE MEMÓRIAS…

Espaço onde o sentimento se expande, onde o dar é antagónico, onde o saber se desenvolve e dilata, onde a troca é possível e desejável.

É condição básica e necessária, para utilização e usufruto do espaço, a necessidade de partilhar e trocar conhecimentos!

Na gândara tudo se troca! Batatas por fruta, influências por trabalho, tempo por tempo, trabalho por trabalho, saberes por sabores, sorrisos por sorrisos, amizade por nada, e, no fim, quando nos dispomos a dar desinteressadamente, verificamos que recebemos muito mais do que o que demos e saímos mais ricos do que entrámos!…

Lá está saliente o nosso orgulho nas origens!

A genuinidade está por todo o lado. Riqueza sublime, conhecimento profundo da realidade e forma de vida.

Não existe rico nem pobre!

Todos são remediados, uns mais bafejados pela sorte que outros, de sorriso mais pronto e espontâneo, são os que menos se incomodam com o material, … o pão nosso de cada dia lhes basta!

Todos vibram com os acontecimentos inusitados que afetam cada um e todos os elementos que integram o grupo/sociedade de que fazem parte.

Respeitam-se mutuamente! Unem-se em torno de projetos e objetivos comuns…. Alcançam a felicidade lutando e construindo pontes, assentes em sólidos muros que todos utilizam para ir mais além rumo á felicidade e deixando, á passagem, desbravados caminhos para simplificar e facilitar a passagem aos vindouros…

São, somos, …GANDARESES DE GEMA!

Terreno arenoso, consequentemente pobre, plano, onde os habitantes, praticando uma agricultura intensiva, vão revolvendo quase diariamente as terras, no intuito de as oxigenar, fertilizar e delas tirar o maior proveito em termos de produção agrícola.

Designações como "uchas", "areias", "palhais", "fojos", "cabeças pintas", "chão velho", "costeirinha", "moitas altas", "Quinta da ciana", "quintas", "serbatinho", "foros", "areia rasa", "barros", "alto da fonte", "brajeira", "cabaços", "canto de cima ou de riba", "barrocas", "fonte da meneza", "cova do baltazar", "joinais", "covadinha", "fojo da pacha", "ribeiros", "peixota", "seixo dalém", "geiras", "olarias", "baleira", "broão", "águas férreas", "baleira da bruxa", "pinhal redondo", "pinhal do fojo", "mato do seixo", “Coroal”, “terra das canas”, “Ribeiros”, “Sardas”, “Cova da Rabeca”, Lagoa da Limpa” referem-se a zonas determinadas da área da Freguesia do Seixo, que todos ou quase todos os habitantes da Freguesia sabem localizar com exactidão. Muitos deles foram usados como topónimos para as ruas dos lugares, propostos e aprovados por uma comissão de moradores constituída pouco antes da criação da Freguesia Civil.

quinta-feira, 3 de novembro de 2022


 …E que bem que lhe sabia ficar em casa nesse dia!

Era inesperado, bem o sabia, mas a sorte também havia de começar a mudar. Levantou-se á mesma hora de sempre, não fez a barba, quebrou desde logo a rotina, tomou o café e foi directo para o quintal. O gado chamava-o e ele, como que a querer entabular diálogo, ia falando baixinho, numa linguagem monossilábica, quase inaudível para si próprio, pensado um pouco alto, mantendo um ar de satisfação no rosto.
Por um dia estava longe, livre da escravidão do relógio, da máquina de barbear, do rebuliço do dia-a-dia. Por um dia achava-se chefe de si mesmo, não tinha que dar contas senão ao… seu estômago! E estava seriamente a pensar em testá-lo!
Sentia-se bem! Era o primeiro dia de “descanso” que a vida lhe estava a dar depois de tantos meses de incerteza, de medo, de ansiedade. Passado todo este tempo achava-se capaz e necessitado de se abrir com alguém, de fazer ouvir a sua voz, de dividir preocupações e acumular certezas. O Pimpolho (de que omito o nome para protecção da sua privacidade e a pedido do próprio, pimpolho este que hoje já conta mais de setenta e não é mais que o nosso interlocutor!) agarrava-se á vida com todas as forças. A mãe, idem aspas. Resta-lhe, no entanto, um pequeno senão que o atormenta: para onde terá ido o tumor gerado na mesma altura do pimpolho e no mesmo espaço alojado até determinada altura? O que o preocupa é realmente saber como desapareceu ele!
E vivia nesta amargura que não o abandonava e afligia dura e severamente. Tinha medo! Medo do que poderia ter sido! Medo de ficar só! Medo de perder o gosto pela vida! Medo de mostrar aos mais chegados que… tinha medo e quais eram as razões desse medo. Nunca tinha tido coragem de falar abertamente com a sua Maria acerca desse assunto, que aceitava ser só dela mas que o revoltava por esse facto. Temia o pior!
Talvez, sem fundamento, agonizava neste estado de torpor de vida e consciência e acordava sobressaltado durante a noite, tentando ouvir a respiração da Maria só depois descansando, ou melhor, dormindo mais um pouco, forçado pelo cansaço! Recorda a cada momento a ansiedade, o desassossego que o afligiu quando a Médica o chamou á sala para assistir ao nascimento do Pimpolho. E estava já interiormente preparado para tudo quando algo que desconhece aconteceu a Médica decidiu ter de fazer o trabalho no Bloco! Azar o seu! Agonia dobrada! Acompanhou a Maria até á entrada do bloco e…foi impedido de entrar! Ficou por ali, num impasse que o enlouquecia e queria tirar á vida. Viu-se só naquela minúscula sala de espera, que lhe parecia enorme e em vez de lhe abrir horizontes, o enfezava e fazia definhar atrofiando-o até na respiração! Ousou, por um curto período de tempo, como que esmagado pela dor da dúvida que lhe provocava fortes dores de cabeça, falta de visão, incerteza de movimentos, espreitar pela porta por onde havia entrado, diametralmente oposta aquela por onde haviam levado a sua Maria, espreitar para o espaço que lhe parecia ser um corredor mas a que não havia tomado atenção. Deparou-se com um letreiro sobre a porta, fechada, que deveria dar acesso a um compartimento situado mesmo em frente daquele onde se encontrava, que dizia simplesmente “CAPELA”.
Absorto, não conseguiu, no imediato, relacionar o espaço indicado com o significado da palavra que lia sobre a porta. Uma senhora, vestida de branco e já com alguma idade abeirou-se e disse-lhe simplesmente: “entre! Esperam-no lá dentro! Reconfortar-se-á e quando houver novidades, dar-lhas-ei pessoalmente!”
Entrou de rompante, quase atropelando a senhora em causa! Era na verdade uma Capela. Pequenina! Silenciosa, onde se encontrava uma mesa robusta, com tampo de madeira grossa, servindo de ara. Sobre a mesa, uma toalha alva! Sobre a toalha, uma cruz, também de madeira, com uma imagem, sofrida, de Cristo crucificado.
Olhou em volta e não viu ninguém! Mas…haviam-lhe dito que o aguardavam lá dentro!
A sala só tinha três bancos podendo cada um levar quatro pessoas sentadas!
Já que ali estava, aproximou-se da mesa/altar e deixou-se cair no banco da frente. Não sabe descrever se se sentou, se caiu mesmo! O ambiente era de silêncio absoluto! Ele espetou os olhos na Cruz, fixou a face de Cristo, encarou as suas chagas e… desatou a chorar baixinho, desalmadamente! Soluçava que nem uma madalena e assim se manteve, não sabe ao certo por quanto tempo! Ele e quem o esperava! Nem uma palavra audível dirigiram um ao outro! Entenderam-se no sofrimento, na angústia sofrida e consumação do destino involuntariamente fabricado. Sabia só que pouco passava das três da tarde quando ali entrou! No seu soluçar, lembrou os ensinamentos que adquirira nas aulas de catequese, Ele também havia entregue o espírito ao Criador exactamente ás três da tarde!
Um calafrio, lento e forte, percorreu-lhe todo o corpo. Suores frios, em vagas grandes, mais parecendo pingos de chuva em beiral, percorriam-lhe o rosto! Quem lhe estaria a sussurrar tais pensamentos, a ele que se encontrava numa casa de vida existente num edifício onde por vezes se luta por trazer á vida novas vidas? Como poderia estar a receber correntes negativas e a deixar-se influenciar tão fortemente? Parecia petrificado, hipnotizado, tendo adquirido uma cor branca de um pálido agressivo e não desviava os olhos daquela imagem sofrida! Teve a ligeira impressão de que alguém lhe pousou a mão sobre o ombro mas não reparou quem lhe fez tal! Não quis saber quem lhe estava a fazer companhia e manteve-se na mesma posição!
Certo que não foi ouvido nenhum rumor de porta a abrir e/ou a fechar o que quer dizer que ninguém entrou nem saiu daquele lugar com ele lá dentro!
O relógio não parou… não sabe ao certo por quanto tempo esteve na Capela sozinho (?!).
Repentinamente, alguém abriu a porta que, ao rodar no eixo da dobradiça, produziu um ruído semelhante ao de rato a chiar. Era uma enfermeira, mas não a mesma que lhe havia dito “quando houver novidades, eu mesma lhas virei dar”. Com bata verde, luvas e máscara, fez-lhe sinal para que a seguisse. Teve um pressentimento que quase o levou á loucura. Seria possível? Estaria para receber alguma notícia relacionada com os pensamentos agoirentos que nessa tarde o haviam afligido? Quase como um autómato, sem vontade, a medo, vagarosamente seguiu a figura até á sala por onde lhe levaram a Maria. Ali o mandaram esperar um pouco. Ainda tentou o diálogo, mas não obteve qualquer palavra. Passado um minuto, que lhe pareceu uma eternidade, apareceu-lhe então a tal Senhora vestida de branco, algo idosa, que trazia ao colo e embrulhado em algo que parecia um lençol, um bebé! Pequenino e muito arroxeado (sianuzado?)! Colocou-lho ao colo e disse-lhe: agora já parece estar tudo bem! Ainda com o filho nos braços, com as lágrimas a cair, interrogou a enfermeira com ansiedade e com os olhos marejados. Agora já está tudo bem, foi a resposta que obteve! E levou o bebé pela mesma porta por onde o trouxe! Ficou ali parado alguns minutos chegando mesmo a encostar o ouvido á porta para tentar ouvir alguma coisa! Baldado o esforço!
Lembrou-se repentinamente e arrancou quase a correr para o espaço onde esteve durante todo o tempo desde que deixou a Maria. Ali chegado, caiu deliberada e voluntariamente aos pés daquele que na cruz havia sido Crucificado! Baixou os olhos e… soluçou em silêncio!
Entrou nele e decifrou o significado das palavras da mulher vestida de branco: “alguém o espera lá dentro”! Lembrou-se também da mão que sentiu sobre o ombro! Foi Ele que o quis afastar dos maus pensamentos que estava a alimentar!
E a sua confiança que esteve tão abalada!
Como pode por em causa a esperança e certeza de tudo d’Ele depender? Se sempre fez tudo como se tudo de si dependesse e simultaneamente, esperava, confiada e loucamente, como se tudo e exclusivamente d’Ele dependesse, como pode ter vivido momentos tão amargos e longos naquele dia, sem sequer se ter lembrado de dividir com Ele as preocupações?
E ainda hoje não sabe a resposta á questão que tanto o afligiu durante tanto tempo!
Nem uma só vez se lembrou de sorrir e agradecer … por ter acontecido!..."

sábado, 22 de outubro de 2022

Matança. É S. Martinho...

 "… O dia amanhecera chuvoso. Uma morrinha chata, chuva miudinha e constante caía concretizando o molha tolos que todos conhecemos. Tudo estava já a postos. Embora ainda no paito, ao carro haviam já sido tirados os taipais e colocado um fogueiro no último buraco do lado esquerdo (o compadre Albano, matador experiente, é direito!). Já tinha as cordas pró nariz e prás pernas, a tesoura e as telhas prá chamusca, os torrões de adobe pra lavar os pesunhos. As agulhas estavam sequinhas e em monte. Acho até que eram capazes de estar ásperas de mais. O alguidar estava já junto ao borralho, onde ardia uma boa fogueira sob as panelas de três pernas, que estavam cheias de água quente, para levar para a estrumeira e lavar o pescoço ao porco no sítio da facada. A cebola já estava cortada miúda no alguidar das morcelas. Ah, faltava dar um salto ao fundo do quintal e cortar um ramo de loureiro verde para cozer o sarrabulho.

Os convidados estavam já a chegar tendo os homens ido ao curral ver o animal, bicho aí para as onze, doze arrobas. O mata-bicho estava já na mesa do alpendre…"


domingo, 9 de outubro de 2022

...e arroz com feijões!

 ...

Chegada a casa, a Maria, correu logo para a cozinha para provar os feijões que deixara, manhã cedo, ao lume na panela, (que das três pernas já só tinha três cotos), adubados com um pedaço de toucinho alto, ajeitar os tiços debaixo da trempe e juntar-lhe mais uns gravetos para iniciar a fervura e depois “masturá-los” com umas batatitas, uns bagos de arroz e umas folhitas de couve. Depois dirigiu-se ao quintal e, de passagem, pôs uma gabela ao gado, cortou meia abóbora aos bocados, juntou-lhe um punhado de farinha, acabou de encher o balde na bomba e deitou tudo na pia ao porco, deu milho às galinhas e foi depois apanhar uma mão cheia de couves para a panela. Tinha as voltas dadas para o meio-dia.

Algum tempo passado e o sino da torre da Igreja fez-se ouvir anunciando o meio-dia! Era tempo para parar, dar graças, e invocá-lO! Logo ali, erguendo os olhos ao céu, mecanicamente e em voz alta, rezou as “Ave-marias”: “O Anjo do Senhor anunciou a Maria…” No final benzeu-se, e foi para a cozinha pôr os pratos na mesa e esperar pelo Manel e pelos cachopos que deveriam estar a chegar.

Sobre a mesa foram colocados seis pratos, a broa, a “picheira” com vinho [a pinguita sempre havia de dar mais alguma força ao Manel para puxar pelos outros a cavar (É que isto de exemplo tem que se lhe diga!)] e a panela das sopas com o testo em riba. Não esqueceu o garfo de ferro que o homem tanto aprecia, aliado á navalha que sempre traz no bolso. Coisas pequenas… que nos levam longe e dão origem a grandes obras fazendo aumentar a afeição!

Chegaram os cachopos e foram ter com o Avô que ainda não tinham visto nesse dia. Pouco depois foi a vez do Manel que entrou pelo pátio dentro a assobiar e se dirigiu á bomba do poço para lavar as mãos, a cara e acabar de lavar os pés e pernas, em águas mais limpas, sim porque a crosta maior já ele havia primeiro rapado com a enxada e no caminho, ao passar na Vala da Sapateira limpou ainda alguma lama.

Mal entrou a porta da cozinha, entrou-lhe pelas narinas um cheirinho divinal e, “salvando” todos, sentou-se á mesa.

E o Manel, depois de todos se terem servido, (como que a querer certificar-se de que o alimento chegava para todos) serviu-se também ele e, em jeito de brincadeira mas com muita clareza, deseja a todos bom apetite, “bom proveito á barriga e ao peito” e “bota a dar-lhe porque quem não é para comer, também não é para trabalhar.

Que bem lhe sabiam aquelas sopas! E que paladoso estava o naco de quinhão que lhe calhou! Até parecia ter febra agarrada! Aquele molho a escorrer para o pedaço de broa (de cima e de baixo, farturinha graças a Deus!) pois o toucinho do porco morto pelo S. Martinho, graças ao bom Stº Antoninho, era bem alto e tinha tamanho e quantidade que deu para encher a salgadeira até cima, garantindo carne para o ano inteiro assim a soubesse arratelar a sua Maria. A ele competia ensinar os filhos a “acuntar” o quinhão e dele tirar paladar. E que bem lhe sabia a canecada do seu inconfundível parreirol!

Finda a refeição, seu sogro usou dos pergaminhos dados pela proveta idade e deu graças, de forma sentida: “Abençoai Senhor o alimento que acabamos de tomar. Que ele restaure as nossas forças para melhor vos servir e amar. Abençoai quem esta refeição preparou e não vos esqueçais daqueles que para vós chamastes. Ás Almas dai-lhe Senhor o eterno descanso… que descansem em paz”. Todos responderam em uníssono “Ámen! Assim seja!

Que respeito se viveu durante aqueles momentos! Que sentidas foram as palavras! Como o Ti Joaquim se lembrava ainda da sua Ana! E iam passados mais de vinte e três anos!

Cabisbaixa, a Maria pensava na melhor maneira e altura para por o Manel ao corrente do seu estado…

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

 ...

Andou na moina todo o dia. Com as calças rotas nos joelhos, agora via-se em palpos de aranha para arranjar uma desculpa para apresentar à mãe de modo a que o mexedor não se fizesse sentir mais intensamente quando chegasse a casa. Sim, ele já sabia que tinha o destino traçado: quando chegasse a casa iria apanhar mais uma vez para não quebrar a rotina a que estava habituado. E de nada lhe valia chorar e chamar-lhe mãezinha ou prometer que não voltava a acontecer. A vontade de ir por aquela vala fora, de calças arregaçadas até ao joelho, de pé descalço, correndo o risco de sair todo arranhado pelas silvas ou de cair na água e ficar todo molhadinho, era superior ao cumprimento do dever e de fazer as obrigações que a mãe lhe deixou destinadas quando ia andar de fora, trocar tempo ou ao jornal. Até reconhecia que a mãe fazia grande esforço para o trazer limpo, anafado e mais ou menos asseado mas a vontade de ir aos ninhos era mais forte do que o dever de ficar e cumprir.

A primeira ainda não tinha ganho vez nenhuma e por isso mesmo já conhecia o mexedor em todos os seus lados. Ainda bem que a mão o agarrou pela mão e só lhe assentou o mexedor no cu. Estalava mas já começava a ganhar calo…

Mas que raio. Como é que ele foi logo escorregar de tal maneira que o toco da tranca lhe apanhou a perneira no joelho, se enganchou e lhe rasgou as calças. E que corte ele tinha na perna também… Mas a perna era o menos. Ferveria água com folhas de eucalipto, lavava bem lavadinho e punha um pouco de azeite. Se aquele tratamento curava a capação dos porcos, e eram dois cortes tão fundos, também havia de lhe sarar a ferida do joelho que embora mais comprida, eram muito mais baixa…

Nesta cogitação deu consigo sentado dentro da cabana da palha, junto da eira e só veio a si quando começou a ouvir o alarido e alazoado da mãe a chamar por ele em altos berros e a dizer que o desancava com elas. É o apareces!

Aconchegou-se mais e desviou-se do sítio onde sabia que a mãe iria, mais tarde ou mais cedo, buscar a gabela da palha para dar à vaca. Ali não tinha frio e podia aguardar calmamente até arranjar uma razão para justificar o rasgão das calças novas de cotim. Mas a perna que lhe começou a doer! Relhou os dentes com força e assim se manteve até que amadornou e adormeceu…

Não sabe o que se passou naquele intervalo de tempo. Só sabe que era já noite escura quando o avô o agarrou e o levantou, gritando para a filha que já o tinha encontrado.

A mãe tinha chegado a casa e enregado a dar as voltas, não sem antes o ter chamado em altos berros, como de costume, ele ouvia os gritos dela e ficava a saber que eram horas de regressar a casa. Mas nesse dia, com medo à tareia por causa das calças rotas, escondeu-se na cabana da palha e adormeceu. Esteve ali algumas duas horas ou mais pois se até o avô já andava à procura dele… E a mão garantia que já tinha ido à cabana e não o tinha visto lá… Mas o avõ, que ainda ouvia muito bem e sentiu um quase ronronar e remexer da palha, sem meias medidas meteu a mão e, imagine-se, agarrou o fidalgo…

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Gente do Seixo...

 ...

Areias inconstantes, simples e soltas da Gândara, deram origem a um povo simples, aberto, solto, persistente, sofrido, fazedor de soluções para o seu dia-a-dia.

Capaz de se adaptar e influenciar o meio que o envolve e sociedade que integra.

O Seixo também já teve feira! Aqui se desfaziam dos produtos de que abdicavam por considerarem supérfluos, “gulapeiros”, em detrimento do necessário essencial.

Aqui compravam, vendiam e trocavam produtos. Aqui trocavam experiências, ensinamentos. Aqui enriqueciam de forma estranha numa contínua troca de teres e conhecimentos!

Povo crente! Que cresceu á sombra da torre da Igreja onde o Sr. Cura ou Abade eram órgão máximo na gerência e orientação de toda a Comunidade.

Gente que fixou nuvens de areia! Que transformou areias soltas e simples em terrenos produtivos!

Gente que se adaptou ao rigor do tempo e criou condições para, por conhecimentos adquiridos, viver em plena harmonia com tudo e todos! Até com os animais que explorava!

De manhã e á noite, cabeça encostada entre os quartos traseiros e as costelas da vaca, mãos nos tetos em movimentos verticais de cima para baixo e de aperto intermitente, de massagem, precisos e constantes, vão libertando do úbere o precioso líquido!

Leite que de manhã e á noite, é entregue na leitaria.

Gente que ia á feira apalavrar. Gente que negociava em plena rua produtos e vivências. Gente que respeitava e se fazia respeitar dando á palavra mais valor que muitos documentos hoje lavrados nos Cartórios!

Aqui se trocavam e negociavam ferragens, cereais, tamancos, peixe, vinho, comidas, roupas, barros, batatas, plantas, porcos, bovinos, aves, chupas, tremoços…

Gente que olhava os tempos e, com base nos ensinamentos que oralmente lhes foram sendo transmitidos pelos antepassados, ousava fazer futurismo, sentenciar o presente e vaticinar ocorrências futuras!

Gente que labutou nas olarias a fazer adobes, de sol a sol…

Gente que partiu para os “Brasis”, para as “Américas” e Europa na procura e luta pela concretização de um sonho!

Gente que, com sangue, suor e lágrimas, se entregava durante mais de vinte e quatro meses, de corpo e alma, lá longe, muito perto do Cabo das Tormentas ou da Boa Esperança, a defender a Pátria amada, por imposição! Que amor… mas amavam o dever até á morte se preciso fosse!

Gente que ousava e até… trocava tempo!

Gente que carregava “zargas” á cabeça!

Da labuta diária fazia parte o constante passar de carros de gado (com carradas de agulhas, de moliço, de sal, de trancas, de abóboras do Palhal…), (o carro do burro com peixe, com fruta…)

Agitação e movimento constante de sol a sol! Desde as Ave-marias ao toque das Trindades! Agitação que dava vida e cor a esta aldeia!...

domingo, 22 de maio de 2022

Andamos muito tempo em piloto automático...

 


Encontrei-o cabisbaixo, sentado na soleira da porta da Casa da Eira, com o chapéu nas mãos e afogueado com o calor que se fazia sentir.


Ti Manel fazia hoje os 93. 

Mas nem por isso se escusou a falar comigo daquilo em que estava a cogitar.

Depois dos cumprimentos da praxe, um bacalhau bem apertado, sai-se com esta:

…e a vida vai-nos presenteando com tudo e até com o que menos se espera. Ás vezes não contamos com ela, nem nela pensamos, e somos forçados a ultrapassar os obstáculos que nos surgem pela frente.

Chego a pensar se serão na verdade obstáculos ou se não serão antes estímulos para, com mais garra, ir mais além, no mesmo rumo, tendo em vista o mesmo objetivo.

A partir duma certa idade parece que passamos a andar em piloto automático, sem tempo para correção de rotas, acomodados com os resultados do que vai surgindo no dia a dia e… deixamos de estipular novos objetivos, aceitar novos desafios, aventurar-nos noutros rumos, numa palavra acomodamo-nos!

E os anos vão passando.

Cada doze meses aumenta um ano na nossa presença terrena!

A determinada altura, com o diminuir da velocidade de cruzeiro em que temos andado, mas sem abandonar o piloto automático, apercebemo-nos de “névoas” que vão surgindo do nada, mas que nos começam a incomodar e obrigam a “agarrar” de novo nos comandos, recuar, repensar, corrigir direções, procurar causas e justificações, e verificamos que as oportunidades foram surgindo, que as deixámos passar ao lado distraídos e ocupados com outros interesses, quiçá, de menor valor!

A saúde valorizamo-la quando o revés da doença se apodera de nós! Da alegria sentimos falta quando a tristeza nos inunda e por vezes nos afunda em profunda solidão.

Chegamos à conclusão que afinal não temos família!

Pertencemos a um grupo restrito de pessoas, que se protegem e apoiam até determinada altura. Mas lá vem o momento em que tomamos a noção da realidade e constatamos que, afinal, quando dizemos que queremos muito aos outros, mais não estamos do que a querer que eles sigam as nossas orientações. Esquecemos a individualidade de cada um e, por vezes, até o respeito que cada um nos merece nas decisões que vai tomando ao longo da sua vida, quando “liga o seu piloto automático”!

Gastamos muito tempo a procurar o bem que nos rodeia e que não enxergamos e não valorizamos os momentos que vão passando, certinhos, contínuos, constantes.

Por falar nisso, anda cá comigo, vamos ali à Casa da Arrumação provar um parreirol à minha saúde e à nossa amizade!... 

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Olha que eu falei em casar e a primeira coisa que o meu pai me disse foi “quem casa quer casa, portanto, trata lá de falar com ela e digam onde querem erguer o vosso lar pois ajudar-vos isso vamos mas interferir, não contem connosco”! Mas espera aí. Quem é a cachopa?

Lá fui obrigado a abrir o livro dos segredos e deixá-lo ler algumas páginas. 

-Tu não me digas que andas de namoro coa filha do Castelhano. Tu toma tento nessa cabeça. Aquilo é gente de respeito e nós também somos dados a ele.

-Então fique a saber que sexta-feira à noitinha, vamos lá a casa deles que eu quero pedir a Maria em casamento. Já falei com ela e estamos de acordo.

Desde essa conversa o Ti Manel tudo fez para se encontrar com o Castelhano em ponto de poder tocar no assunto, mas nunca surgiu oportunidade para tal.

No dia aprazado, dadas as voltas em casa, Ti Manel, mulher e filho, vestidos mais adonairadamente, dirigiram-se a casa do Castelhano, tentando fazer o percurso por caminhos que dessem menos nas vistas pois não queriam dar a conhecer as intenções.

Já a Maria, o pai e a mãe estavam como que a fazer tempo, com tudo pronto, voltas dadas, panela ao lume, mesa posta, à espera de tão ilustres personagens. Que raio, iriam ser compadres pois os filhos iriam casar!

Feitos os cumprimentos da ocasião e enquanto os homens se dirigiram à adega provar um parreirol, as mulheres, timidamente meteram-se com a cachopa a tentar tirar nabos da púcara, para saber se já tinha acontecido alguma coisa ou se o namoro era sério e como convém a gente honrada. 

A rapariga, corada, descansou-as, dizendo que nada fizeram que não pudessem ter feito na frente fosse de quem fosse, mas que não tinham querido namorar à frente de toda a gente. Queriam conhecer-se e falar do amanhã em comum. Queriam dar os passos certos no tempo certo.

Chegados os homens, o Ti Castelhano convidou para a mesa, pediu ao “Parceiro” que se sentasse ao seu lado e os “Cachopos” na outra ponta da mesa. As mulheres sentar-se-iam onde quisessem…

Panela na mesa, picheira de parreirol a vazar-se bem, de tudo falaram, menos de casamentos! Até que que, Manel e Maria, pedindo licença aos pais, deram a conhecer as suas intenções e que gostavam de saber as opiniões deles.

Concordaram com o casamento, claro, e logo ali deram início à conversa acerca do dote que poderiam dar-lhe.

> Ti Castelhano, brioso, enaltece e oferece: A minha cachopa levas as baleiras para assentamento! “Olhar que naquilo muitos queriam por a mão, mas cedo decidi que seriam dela. Aquilo é coisa asseada!

> Assim sendo o meu rapaz leva madeira rija, dos pinheiros do Samoical, para serrar e aparelhar pró que for preciso;

> A minha Maria leva atão o rego dágua, terra forte e boa embora esteja dividida pela vala que ali escorre…

> Falei ca Comadre e também vamos deixar que ele fique com a Pichota, que embora seja pequena, tem um bom poço;

> O meu pai, a mangar ou a sério, já aqui há tempos lhe pôs á disposição a borda das olarias. Nunca foram exploradas e tem areia de primeira qualidade e espaço suficiente para fazer o barreiro;

Havemos de ir à cal. Temos os Fornos, o Barracão, O Zambuzal. A do Barracão parece que estala muito…

E o mais se há-de arranjar. Eles já não vão para novos. Ele com 30 e ela com 24 já é idade para se saber o que se quer.

Dum lado e de outro, havia mais irmãos em casa, todos mais novos. Eram eles, lado a lado, quem iria “encertar” os ranchos daquelas famílias. O pai fazia pão com a graça de Deus e o sogro seguia-lhe o rasto. Tanto uns como outros tinham o seu moliceiro, arrimado aos moirões no Cais do Areão! Certo e sabido que o moliço estava garantido para o adubar das terras, assim a Ria o criasse nos seus longos braços, pois os recantos onde ele era mais graúdo não lhe eram desconhecidos. Cada um tinha a sua Junta e ao lado, duas vacas leiteiras que anualmente davam cada uma sua cria, certinhas tanto no leite como nestas. Aquilo eram autênticos colchões …

terça-feira, 15 de março de 2022

 … Todos são muito ciosos daquilo que é seu (herdado e/ou comprado com muitas dificuldades), muitas das vezes as modernas máquinas agrícolas não podiam ser utilizadas nos terrenos, de diminuta dimensão, para lhes dar o necessário arranjo, preparando-os para a sementeira, daí que a enxada fosse um utensílio agrícola muito usado para cavar, á manta ou a releicho, com estona e a tirar dente, dando aos terrenos o necessário arejamento e consequente oxigenação.

Têm forçosamente que ser estrumados e adubados, enriquecidos assim com o húmus e azoto para melhor responder às exigências, em termos de produção, que lhe são feitas! Ensinamentos transmitidos de geração em geração, oralmente e depois, já na idade de ir p’rás terras, na prática. Era assim que faziam já os Pais, Avós, Bisavós, etc., etc. Todos estavam ligados á terra que só produz á custa de muito trabalho e suor.

Durante os meses de Fevereiro e Março, o monte de esterco que havia sido carregado para as terras e amontoado numa das extremidades do terreno, onde havia sido “caldeado” com moliço da Ria, agulhas secas e esterco que havia sido retirado dos currais do gado, tendo servido para lhe “fazer as camas” era dividido e carregado para toda a terra, colocado em montes pequenos ao meio desta no sentido da largura, em espaço onde previamente estonado, deixando a terra nua e crua no sítio onde era descarregada a carrada, alinhados em todo o comprimento e distantes uns dos outros de cerca de quatro, cinco metros, qual fileira de “montes de esterco”, correspondendo o seu tamanho a uma carrada de carro de vaca ou de dois bois.

Depois deste trabalho, feito normalmente pelos homens, as terras eram cavadas com enchadas, por homens e mulheres, formando ranchos em troca de tempo que, manta a manta, reviravam o terreno, depois da estona, cavando á rasa, a releicho ou a manta, de acordo com a finalidade pretendida, tendo em conta a cultura que estava destinada nessa altura para o terreno.

Chegados ao pé dos montes de “esterco”, passavam-nos para trás, para a terra cavada e continuavam a cavar.

Se a sementeira prevista na terra a cavar eram as batatas, quando o rancho era grande e já estava cavada uma porção considerável de terreno, muitas das vezes passava para a parte de trás um grupo de pessoas, nunca inferior a quatro, podendo neste trabalho ser aproveitada uma criança para desempenhar uma função e permitir maior rendimento de trabalho dos adultos. Das quatro pessoas que passavam para a sementeira, uma era a que, munida de um cesto de vime, carregava o esterco dos montes para o corte e o dividia em camada uniforme pelo corte ou carreiro. Outro puxava terra com as mãos para cima do esterco e colocava a semente sobre esta. Outro ainda, eventualmente a criança, munida de um boaneiro, ia colocando pequenas pitadas de adubo (uma mistura de amónio e potassa), sobre o esterco, entre as talhadas da batata, mas nunca muito próximo destas e finalmente, a última, era o alagador que, munido de uma enchada de cem mil réis, ía alagando, cobrindo com terra a semente, deixando assim aberto novo sulco ou carreiro, tapando o primeiro para repetir todo o ritual, quase automático, de cada uma das pessoas que andavam neste corte...

sexta-feira, 11 de março de 2022

sexta-feira, 29 de novembro de 2019


Eram solidários do nascer ao morrer!
Não havia acontecimento, por mais discreto que fosse, que não alegrasse ou
entristecesse toda a Comunidade. Olha que eu tenho histórias… e calou-se mais uma vez, absorto em pensamentos felizes, tal era o seu semblante. Fiquei parado e ele continuou o caminho, íamos agora no Carreiro da Fonte, aquela estrema entre terras, a par com a caleira de água construída em adobes pelo Silvério, mesmo perto da Fonte da Meneza. Ali me sentei até que ouvi o chamamento: Então? Ficas? E lá me fui no seu encalce. Chegados a Fonte, ali nos sentámos e a conversa continuou.
Como te disse no meu tempo era-se solidário do nascer ao morrer. Todos os acontecimentos eram motivo para coisas sérias! Manifestações de carinho e apoio eram uma constante. Olha que ninguém passava por ninguém que o não saudasse, fosse a que horas fosse do dia, conhecesse-se ou não! Os desejos de paz e alegria não custavam nada a dar e agradavam muito a quem os recebia! Não fui educado para andar de mal com ninguém, nem eu nem os do meu tempo!
Se andávamos sempre alegres, bem,… fazíamos por isso...

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

e, depois de longo compasso de espera,...


Ti Manuel parou. Com ar de cismador entranhado pela idade, fala pausadamente e diz-me: Mas tu queres mesmo que eu te conte o sonho que tive? Calou-se e, como eu fiquei boquiaberto olhando-o nos olhos, disse-me com simplicidade:
Abriu-se a Arca do Tempo!
Uma chieira persistente, enquanto o movimento de rotação sobre os gonzos se fazia sentir, incomodava-me finamente a audição, um misto de sons agudos e graves, desconcertados, fazia-se ouvir e suspeitar do conteúdo pelo muito tempo passado desde que a abri pela última vez…
Era o meu segredo!
Pela fina frincha, entre a tampa e a borda da caixa, saiu de imediato um enorme espaço, volúvel, como que um bálsamo inebriante que gostosamente me envolveu e transportou através do tempo, para tempos imemoriáveis, dando-me uma sensação de prazer indelével, que gostosamente abracei e, de sorriso sublime, nele embarquei…
Surgiu-me, ao longe, um SOTÃO DE MEMÓRIAS.
Sabes, aquele espaço por cima da casa da arrumação e do pátio, com frestas entre as tábuas, sítio onde o sentimento se expande, onde o dar é antagónico, onde o saber se desenvolve e dilata, onde a troca é possível e desejável.
Toma atenção que é condição básica e necessária, para utilização e usufruto daquele sítio, a necessidade de partilhar e trocar conhecimentos!
Na Gândara tudo trocamos! Batatas por fruta, influências por trabalho, tempo por tempo, trabalho por trabalho, saberes por sabores, sorrisos por sorrisos, amizade por nada, e, no fim, quando nos dispomos a dar desinteressadamente, verificamos que recebemos muito mais do que o que demos e saímos mais ricos do que entrámos!…
Ali estava saliente o orgulho na minha origem! Naquele tempo, não havia rico nem pobre. Todos eram remediados. Alguns mais bafejados pela sorte que outros é certo. Estes outros, de sorriso mais pronto e espontâneo, eram os que menos se incomodavam com os bens materiais, mas trabalhavam de sol a sol para que o pão nosso de cada dia lhes bastasse, a eles e aos familiares!
A genuinidade está por todo o lado. Riqueza sublime, conhecimento profundo da realidade e forma de vida.
Todos, mas todos mesmo, vibravam com os acontecimentos inusitados que afetavam cada um e todos os elementos que integravam o grupo/sociedade de que faziam parte.
Respeitavam-se mutuamente! Uniam-se em torno de projetos e objetivos comuns. Criaram “róis” para acudir na desgraça. Era a sua forma de garantir ajuda e apoio. Alcançavam a felicidade lutando e construindo pontes, assentes em sólidos muros que todos utilizavam para ir mais além rumo á felicidade e deixando, á passagem, desbravados caminhos para simplificar e facilitar a passagem aos vindouros…

segunda-feira, 27 de março de 2017

boa sorte e muitas felicidades...

...Sempre falou do pai com muito respeito e convicção. Lembrou-se dum episódio em que o surpreendeu a ler qualquer coisa que arrecadava numa mala de folha, rectangular, que tinha no sote da casa de arrumação e onde acumulou recordações. O pai não o deixou, nunca, bisbilhotar o conteúdo de tal baú. Esse facto aguçou-lhe a curiosidade e repentinamente lembrou-se dele. Tu podes muito bem rir-te a bom rir que não me fazes deferença denhuma. Mas que foi berdade lá isso foi. E para to provar, dá-me aí quatro ou cinco minutos que eu vou ali dentro e já volto.
E saiu de imediato rumo á casa de arrumação deixando-me á sombra da figueira. Estava-se ali muito bem. Soprava uma aragem muito agradável, embora se sentisse a onda de calor que nesse dia fazia, parecendo até que trepava da terra para o firmamento. Assim se passaram uns bons dez minutos mas eis que regressa o meu camarada do dia sacudindo na mão um papel esverdeado, o verde já esbatido pela luz e pelo tempo e ares que o assolaram, que me entregou para que lesse e… ficou calado. Pareceu-me que se tinha ido embora! Apercebi-me de que algo estava a mexer com o seu íntimo, quase diria que lhe vislumbrei uma lágrima ao canto do olho. Parecia um envelope mas verifiquei, pelos dizeres que me saltaram á vista de imediato, que tratava dum aerograma! Isso mesmo! A forma de correspondência entre os militares em combate nas ex Colónias Ultramarinas e seus familiares e amigos no Continente. Era uma Edição exclusiva do Movimento Nacional Feminino. O transporte deste aerograma é uma oferta da TAP aos soldados de Portugal. Correio aéreo Isento de porte e sobretaxa aérea.
Fazes ideia da sinceridade do que aí está escrito? A primeira carta da minha Madrinha de Guerra! Nunca a vi! Nunca a procurei nem ela me procurou a mim. Pelo menos que eu saiba mas isso também não tem interesse denhum para ti!
Podes até ficar com ele! Ofereço-to! Mas… cuidado com os nomes que aí estão! Respeitinho, oivistes?!
E, com todo o respeito, aqui o publico neste dia em que passam cinquenta anos da data em que foi escrito! Claro que omito os nomes e endereços como me foi pedido… (traduçáo/cópia ipsis verbis da imagem)
XXXX, 26 /3/ 1967
Inesquecível João faço sinceros e ardentes votos para que a paz, saúde e alegria sejam os três principais elementos a constituir a sua felicidade que eu encontro-me bem graças Adeus.
João ao receber o seu eurograma fiquei muito surpreendida, por não saber de onde é e a quem pertence, mas desde já lhe passo a escrever para saber alguma coisa a seu fim dizia que era quase um vizinho desconheço em tudo mas se quiser que eu seja sua madrinha diga-me para a próxima, a verdade e não a mentira, porque como sabe a mentira só dura enquanto não chega a verdade e;
João digo-lhe atender ao seu pedido tenho imenso gosto nisso em ter um afilhado nas províncias Ultramarinas. Pois pode para a próxima tratar-me como madrinha não acha que está bem assim? Pois acredite nesta que lhe será sempre sincera e através de madrinha ainda podemos viver felizes um dia Deus queira que tudo isto aconteça que eu estou completamente descomprometida mas com isto não quero dizer com isto ou não fique a pensar que o estou a gozar não trato disso não sou pessoa para isso não quer crer que isto é verdade! Eu sei João que nessa vida que você está defacto deve custar bastante, quem esta abituado a andar a passear por um lado e pelo outro agora é chato, mas paciencia temos que nos conformar com o que Deus nos destina mas eu peço desde já Adeus que lhe dê boa sorte e muitas felicidades e o que eu lhe desejo mais Agora João passo a terminar pesso-lhe que quando receber esta meu eurograma que se encontre bem que estou sempre à mesma pesso-lhe do meu coração que não faça papel de comédia com as minhas palavras nunca gostei de coisas de brincadeira pois eu confio em si mas como sabe é melhor prevenir que remediar não acha
Com isto finalizo enviando-lhe, os respeitosos cumprimentos Adeus ate
Sou esta que assino respeitosamente
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Adeus até à sua resposta sim Adeus

Olhei-o e dei por ele embebecido, esperando a minha reação ao conteúdo da missiva. Os olhos arregalados inquiriam-me. Os lábios tremiam e os dedos entrelaçavam-se uns nos outros, como que nervoso, com medo ou ansioso por uma manifestação da minha parte. Mantive-me calado, mudo, cego, imóvel. Fiz uma viagem rápida até aos longínquos anos sessenta do século passado. O que me passou pela memória! Numa primeira fase coloquei-me na pele do soldado que, longe dos seus e da terra que o viu nascer, se entretinha, passava o tempo, chorando lonjuras e saudades dos entes queridos e vida que viveu, mesmo amargurada, avivando memórias e afogando as mágoas num choro descontrolado e silencioso, daqueles me que já não há lágrimas para correr e humedecer os olhos... Logo após, passei ao papel de Madrinha… e interroguei-me com firmeza acerca dos motivos que me levaram a responder á missiva que me fez manuscrever, como resposta, aquilo que leram e redigi. Era sem sombra de dúvida uma virgem pura, educada em regime de ferro e fogo, natural e residente em lugar situado longe dos grandes centros, aldeias ou cidades, que, sensibilizada por motivos altruístas, se entregava ao eventual despudor de alguém que nem sequer sabia que existia até ter recebido a sua comunicação. Que coragem!...

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